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cineclubes e cineclubismo: política é fogo!


CREC / Centro Rio Clarense de Estudos Cinematográficos
Nós Somos o Público!

Neste artigo, originalmente publicado no Grupo da 25ª Jornada Nacional de Cineclubes, Frank Roy Cintra Ferreira, um dos fundadores do Cineclube Bixiga, responde ao artigo publicado por Diogo Gomes dos Santos e Jeosafá Fernandez Gonçalvez na revista Cineclube Brasil.

Cineclubes e cineclubismo: política é fogo!

Frank Roy Cintra Ferreira
Sáb 03 de Jul, 2004 18:58

”No documento intitulado “Entre o que foi e o que será”, publicado à p. 26-27 da Cineclubebrasil nº 2 e arquivado na lista de discussão da 25ª Jornada, após descreverem rapidamente a estrutura e o funcionamento do movimento cineclubista nacional e internacional nos anos 80 e os sistemas de voto nas federações e no CNC, os autores do texto — nosso velho conhecido Diogo Gomes dos Santos e o professor doutor Jeosafá Fernandez Gonçalves — fazem esta avaliação: “Sem sombra de dúvidas, essa estrutura rigidamente centralizada, verticalizada e hierarquizada expressa a visão e as práticas da corrente de pensamento majoritária no movimento, corrente à qual se deve, façamos justiça, o ressurgimento desse movimento que tanto contribuiu para resistência à ditadura. Todavia, os anos 80 significaram para essa corrente uma década de sucessivos desastres, e era natural que tudo que fosse sua imagem e semelhança sofressem (sic) os abalos dessa crise.

No caso do movimento cineclubista, some-se a isso o fato de não ter havido corrente que se oferecesse, consistentemente, como alternativa ao projeto em crise. A crise modelo cineclubista, estreitamente ligada ao projeto da corrente majoritária em cuja cabeça caem os cacos do muro de Berlin, entra pelos anos 90 (…)”.

A abertura de minha mensagem dirige-se a essa passagem em particular, que, no meu entender, agride a todo o movimento cineclubista da época. Tratei de apresentar minha versão pessoal daquele momento, quando era membro do Cineclube Bixiga e da Federação Paulista de Cineclubes. A “análise” de Diogo e Jeosafá me cheira a ignorância ou a má-fé. Na boca de um jovem (em comparação com minha idade, pelo menos) militante do PCdoB, tem um travo de rivalidade mal assimilada e mal resolvida e, co-assinada por um ex-militante do PCB, é uma cusparada no prato em que comeu. Principalmente porque, na Cineclubebrasil, foi publicada páginas adiante da entrevista do Marco Aurélio Marcondes, que dá um testemunho de conteúdo muito diverso ao dessas afirmações. Aliás, a transcrição da conversa com o Marcondes, editada pelo Osvaldo Faustino, omitiu (inadvertidamente, tenho certeza) perguntas e respostas específicas quanto a relações entre o Partidão e o movimento cineclubista.

Além disso, outro membro do Centro Cineclubista de São Paulo relatou-me ter feito advertências quanto a essas afirmativas, que ele credita ao prof. Jeosafá, o qual teria ignorado tais ponderações. Você há de convir comigo que, partindo de alguém que se diz filiado a um partido que nasceu do “racha” provocado pelos relatórios antistalinistas divulgados no 20º Congresso do PCUS e que até há pouco via na Albânia o modelo do socialismo, tais críticas são ridículas. E mais ridículo ainda é falar depois em “nota conjunta” do PCdoB e do PCB (?) e, mais adiante, propor a “novidade” de uma organização cineclubista inspirada na da CUT. Ora, façam-me o favor… É bem sabido que de teoria equivocada dificilmente nasce prática correta. Entretanto, parece que, de tanto repetir essas batatadas, fazendo-se de surdo a depoimentos fidedignos de militantes da época, o moço já obteve um certo sucesso de público.”

O único ouro de Moscou que o Cineclube Bixiga recebeu foi o prêmio concedido a “O homem que virou suco”, que ficou exposto no nosso saguão enquanto relançávamos, em 1981, o filme de João Batista de Andrade, boicotado pelo circuito comercial. Não me lembro de qualquer ligação — sistemática, burocrática ou analógica — entre o Bixiga, a Federação Paulista de Cineclubes e o CNC e o Partidão, embora alguns dos militantes daquelas instituições fôssemos comunistas filiados ao PCB (ver, a propósito, a entrevista de Marco Aurélio Marcondes na Cineclubebrasil nº 2).

O Cineclube Bixiga deixou de existir porque foi mal administrado; morreu de inanição e incompetência, apesar de bem-intencionadas tentativas de ex-participantes, amigos e simpatizantes para mantê-lo em funcionamento; perguntem ao Diogo sobre o paradeiro do seu acervo (mobiliário, filmes, máquinas de projeção, arquivos, biblioteca, material impresso, etc.). Nos anos 90, o movimento cineclubista entrou em refluxo por causa da atuação equivocada de seus dirigentes a partir da 20ª Jornada (de 1986, em Brasília), que talvez não tenham sabido acompanhar, avaliar e se adequar às mudanças políticas brasileiras (consubstanciadas na abertura democrática e na Constituição Federal de 1988), sociais (ampliação e renovação quantitativa e qualitativa das formas de livre organização da sociedade civil) e econômicas (fim da polarização URSS-EUA, novo estágio do capitalismo apátrida e mundialização da economia); também não me lembro de nenhum derrame de entulho mural (stalinista, alemão ou seja de qualquer tipo) sobre o Bixiga, a FPC ou o CNC. Não sei por que deixamos de pertencer à Federação Internacional de Cineclubes (FICC) nem conheço o responsável pela América Latina do seu Comitê Executivo para o período 2003-2005; perguntem ao Felipe Macedo, que, em 1979, ocupava o Secretariado Latinoamericano da FICC.

Quando o cineclube olha para o próprio umbigo — e tem hora em que isso é necessário e salutar —, desabrocha uma definição “clássica”: sem fins lucrativos, estrutura democrática e compromisso cultural ou ético. Isso basta para orientar nossa ação e nossas proposições? Se cineclube é uma forma específica de agregação do público espectador das obras cinematográficas, o que o distingue de outros tipos de organização social também voltados para tais obras, para o cinema em geral, para a produção audiovisual, para a arte e para a apresentação de propostas relativas à vida cultural? A carteirinha da locadora de vídeos me confere status de cineclubista?

Em primeiro lugar, os cineclubes e o cineclubismo fazem parte da história da sociedade brasileira, da sua história cultural e da sua história política. Por sua vez, os cineclubes e o cineclubismo têm sua própria história, com aspectos sociais, culturais e políticos muito próprios e intransferíveis.

Ao longo de sua história, os cineclubes e o cineclubismo estabeleceram compromisso social, político e cultural com as novas formas de relacionamento com as obras audiovisuais — ou, em outras palavras, com formas específicas de inserção no processo de apropriação (produção, distribuição, exibição, crítica e preservação) da obra cinematográfica e de desalienação dos partícipes nesse processo. Por isso, sempre advogaram propostas bem determinadas de políticas públicas no campo cultural e, particularmente, quanto a produção, distribuição, exibição, crítica e preservação da obra cinematográfica. Ao longo de sua história, os cineclubes e o cineclubismo propuseram, defenderam e aderiram a políticas públicas legítimas de democratização do acesso à cultura e, em especial, às obras audiovisuais — ou, em outras palavras, a formas específicas de apropriação dessas obras e de desalienação de seus produtores e consumidores. Por essa razão, os cineclubes e o movimento cineclubista sempre foram contra qualquer forma de censura à exibição das obras de arte, em particular às obras cinematográficas, bem como qualquer forma de limitação à liberdade de expressão. Por fim, não se pode esquecer, como aspecto dos mais importantes da história do movimento cineclubista brasileiro, suas ligações com movimentos similares no estrangeiro.

Nessas condições, os cineclubes e o cineclubismo, assim como qualquer movimento cultural, têm de ter identidade própria — não podem ser linha auxiliar da Secretaria de Segurança Pública, para manter a juventude longe do crime, como quer a secretária paulista de Cultura (ver seu infeliz artigo na p. 3. da Folha de S. Paulo de 23 de abril deste ano) nem atividade vicária de outras formas de organização, como sindicatos ou entidades de classe, grupos formados por faixa etária, vizinhança, fé religiosa ou interesses delimitados que tais, instituições de ensino ou empresas. Inclusão social não é fazer rodinha de hip-hop na estação do metrô no fim do expediente diário de office boy nem ter salinha lá na Associação Não Sei do Quê para assistir DVD no fim de semana.

Quanto a sua organização, os cineclubes (individualmente, cada um com suas peculiaridades) devem se apoiar em seus respectivos públicos, com perfis sociais característicos, localização geográfica delimitada, etc. — com identidade própria e endereço certo e conhecido. Isso implica alguma forma de projeto, planejamento, divulgação, realização e registro de atividades. Mas não vejo motivo para que isso impeça os responsáveis por seu funcionamento de serem remunerados por seus serviços, sob certas condições de controle e prestação de contas.

Nessas circunstâncias, o conjunto dos cineclubes, cada um com suas peculiaridades e apoiado por seu respectivo público, deveria compor o movimento cineclubista, independente do Estado e das instituições privadas (sem abrir mão de propor e de lutar por determinadas políticas públicas), dos partidos políticos e dos organismos religiosos (sem nunca se furtar ao debate ideológico) —, movimento que, sempre que possível, deve ser organizado de baixo para cima, da periferia para o centro e do particular para o geral.

Reciprocamente, não existe cineclube ou cineclubista sem movimento cineclubista, isto é, nenhum cineclube, nenhum cineclubista pode reclamar para si o monopólio e a guarda exclusiva das melhores características e tradições da ação cineclubista. E é muito feio — e injusto para com quem está honestamente na batalha há anos — fazer festinha de inauguração ou clonar cineclube que não funciona nem funcionará, só para ter voto na próxima Jornada…

O movimento cineclubista, no Brasil, passou por diversas fases (a respeito das quais existem sérios estudos e estudiosos): intelectual, contestadora dos padrões estéticos hollywoodianos, nacionalista, militante pela defesa do cinema nacional, militante contra a ditadura e… o que mais? Ao longo dessa trajetória, os cineclubes e o movimento adotaram diversas formas de organização e representação. Agora, se a rearticulação do movimento é para valer, cabe definir, propor, defender e implantar outras e inéditas formas — porque os problemas a enfrentar são outros e inéditos. Todavia, uma diretriz organizativa sempre deve ser a democracia. E, no debate do novo cineclubismo, talvez a questão mais polêmica seja a da profissionalização, tema que entrou em pauta com a criação de cineclubes como o Bixiga e o Estação Botafogo.