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cineclube e cinema no brasil: traços de uma história


Cineclube e cinema no Brasil: traços de uma história
Cesar Augusto de Carvalho1
Universidade Estadual de Londrina – UEL, PR
c_carvalho@uol.com.br
Resumo
O entrelaçamento cinema e modernidade se dá no Brasil mediada pela ação dos
cineclubes. Divulgadores da idéia de uma qualidade estética na produção filmográfica,
os cineclubes tiveram importante papel para o cinema nacional. Esse propósito
cineclubista contaminou o imaginário da burguesia paulista, que realizou o projeto de
uma produtora hollywoodiana, a Vera Cruz, que deixou um legado considerável para a
história do cinema brasileiro, apesar dos seus poucos anos de existência.
Palavras-chave: história do cinema, cultura cinematográfica; cineclube.
A sessão inaugural do Clube de Cinema de Marília se deu em 12 de outubro de 1952. O
filme exibido foi o hoje clássico, A Dama de Xangai, dirigido por Orson Welles e
estrelado por uma Rita Hayword sedutora e atraente. No início daqueles anos 50, a
efervescência cultural da capital paulista espraia-se pelo interior. E sob a liderança
paulistana, o movimento cineclubista se consolida ao mesmo tempo em que surgem
os museus e a arte se institucionaliza redefinindo os padrões estéticos.
O Clube de Cinema de Marília é fruto desse momento. Momento em que a Cidade
Menina, como era conhecida, vivia o apogeu da urbanização, processo típico do
interior paulista. Suas características industriais delinearam-se já nos anos 30 quando,
em substituição ao café, seus agricultores plantaram algodão criando as condições
para o surgimento de duas fábricas de óleo. Nos anos seguintes o aumento das malhas
ferroviárias e rodoviárias beneficiou a expansão industrial da cidade consolida-a como
produtora de alimentos.
O processo de modernização urbano e industrial trouxe, em seu bojo, a formação de
uma classe de proprietários, uma burguesia local, cabocla, que, a exemplo dos
burgueses paulistanos participavam, talvez de forma inconsciente, do mesmo processo
de promoção e incentivo da cultura como parte integrante de um projeto liberal não
1
Professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UEL – Universidade Estadual de
Londrina. Autor de Viagem ao mundo alternativo: a contracultura nos anos 80. SP: Edit. UNESP, 2008.http://www.rehime.com.ar
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claramente delineado. A alta cultura deveria ser democratizada e o cinema era, àquela
altura, uma forma bastante plausível de aumentar o fluxo de bens simbólicos, antes
restritos a uma camada ínfima da população brasileira, as elites ligadas aos grandes
latifúndios.
Neste contexto amplo e carregado de elementos simbólicos se insere a sessão
inaugural do Clube de Cinema. Primeiro, o ato em si da inauguração que marca o
movimento cineclubista em todo o país. Movimento este que tem como objetivo criar
para o público um espaço cultural onde se pudesse assistir aos filmes, debatê-los e,
assim, formar uma mentalidade cinematográfica que denotasse, nos gestos e hábitos
de seus participantes, sua inserção na modernidade brasileira. Ao contrário das
décadas anteriores, quando então o cinema era considerado uma arte menor, puro
entretenimento do povo iletrado, a partir da década de 40 ele é alçado à categoria de
arte. Arte promovida pelo desenvolvimento industrial e, ela mesma, uma arte
industrial agora reconhecida. Cabe aos cineclubes e associações de cinéfilos a tarefa de
legitimá-lo como arte e forma de conhecimento.
Mas se o ato inaugural do Clube de Cinema de Marília insere-o num movimento mais
amplo de democratização cultural, a escolha do filme de Welles confirma outros
elementos presentes no cenário da cultura brasileira. Sem fugir à regra dos demais
cineclubes, os cinéfilos marilienses escolhem para assistir e debater um filme que,
além de estrangeiro é norte-americano. Neste momento, início dos anos 50, São Paulo
apresenta um quadro de produção cinematográfica bastante ativa com várias
produtoras atuando, dentre elas a Cia. Vera Cruz, propagada como a Hollywood
brasileira.
Uma década antes, no Rio, a Atlântida produzia aos borbotões as chanchadas. Os
cineastas brasileiros enveredavam pelo caminho da aventura cinematográfica e, mal
ou bem, colocavam seus filmes no circuito exibidor. Mas, o cinema brasileiro não é
foco das discussões cineclubistas. Estes dão preferência aos filmes de arte,
tecnicamente bem elaborados. Como se sabe, os filmes da Atlântida eram um sucesso
de público, mas um fracasso de crítica e, portanto, escapavam ao universo da arte. Já a
Vera Cruz, apesar de todo seu esforço midiático de se impor como uma produtora à
altura de Hollywood, não conseguiu legitimidade como produtora de filmes artísticos.
Em conseqüência, nos cineclubes, os escolhidos eram, necessariamente, os
estrangeiros.
Assim, a cultura que se delineia é uma cultura estilizada, sedutora e misteriosa. Cheia
de códigos e segredos a exigir um repertório para ser conquistada, tal qual Elsa, a
personagem interpretada por Rita Hayworth. E a sedução é tanta que no segundo
encontro dos cinéfilos marilienses é escolhido um clássico, já àquela época, do cinema
russo, O Encouraçado Potenkin (1925), de Sergei Eisenstein. E, cada vez mais http://www.rehime.com.ar
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motivados com a qualidade cinematográfica, as cópias em 16 mm são substituídas
pelas cópias em 35 mm, uma bitola capaz de realçar ainda mais a qualidade técnica e,
por conseqüência, a estética fílmica.
Se o filme de Welles apresenta esta característica simbólica extrínseca, por assim dizer,
decorrente do fato de ser um filme estrangeiro, encontram-se na sua narrativa dois
outros elementos intrínsecos. São elas: a música de Ary Barroso, Na Baixa do
Sapateiro, utilizada como trilha sonora fora do lugar, já que seus intérpretes são
mexicanos e, portanto, nada tem a ver com o cenário onde se desenrola a ação, o
México; e a história, contada pelo protagonista, dos tubarões que, ensandecidos pelo
próprio sangue devoram uns aos outros.
A primeira, além de marcar o modo típico dos norte-americanos lerem as culturas
consideradas exóticas fora do contexto – e as sandices que ilustram esse fato são
inúmeras -, ela nos apresenta uma pista. Pista esta que pode ajudar a compreender o
modo de pensar brasileiro com sua imensa “vontade fela da puta de ser americano”,
como o diz em outro contexto, Caetano Veloso. Vontade esta que permeará boa parte
da produção cultural brasileira e, em especial, a própria Vera Cruz, a Hollywood
brasileira.
Welles certamente conheceu a música de Ary Barroso quando aqui esteve, nos idos de
40, na campanha da política da boa vizinhança patrocinada pelo governo americano. A
missão do diretor era filmar um documentário sobre o Brasil, mas o projeto foi
abandonado. Se a presença de Welles foi ocasional, qualquer outro diretor poderia ter
vindo, a política de aproximação norte-americana não. E suas marcas incrustaram-se
em nossa cultura e ajudaram, ainda que antropofagicamente, a definir nosso brazilian
way of life.
O segundo elemento intrínseco à narrativa fílmica é a história dos tubarões. Utilizada
como metáfora para caracterizar o comportamento autofágico de seus personagens,
ela serve também para metaforizar a situação brasileira da época. A própria cidade de
Marília, à sua maneira cabocla, vê nascer um novo tipo de proprietário, o industrial,
que a população apelida de tubarão, referindo-se ao jeito inescrupuloso de aumentar
lucros para satisfazer sua ganância.
A projeção do filme em 1952 é um evento deste período histórico da sociedade
brasileira, em especial a paulista, que vê surgir os novos ricos, empresários industriais,
e suas fábricas fumegantes.
Mas a modernidade não se constrói só com fábricas, ela precisa de um estilo de vida
condizente e legítimo; a cultura, em seu significado civilizador e formador de
mentalidades pode, e deve cumprir este papel.http://www.rehime.com.ar
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O cinema será um dispositivo importante neste processo. Depois de legitimado como
arte, os cineclubes se encarregam de propagar a importância da cultura
cinematográfica e, num certo sentido, dirigirem as discussões sobre o cinema como
arte e suas diferenças com o cinema comercial, produto de massa considerado não
artístico.
Indissociavelmente ligado à figura do cineclube o cinema brasileiro deve boa parte de
sua existência às pessoas que, movidas pela paixão, trabalharam em prol de uma
cultura cinematográfica.
No caso brasileiro, o exemplo mais evidente é o papel que os integrantes do primeiro
cineclube, o Paredão, teve na formação de um projeto para o cinema brasileiro. Eram
cinco jovens, entre os 18 e 20 anos, no final da década de 1910, que saíam do cinema e
iam para as encostas de um paredão conversarem a respeito do filme assistido. Autointitulados Big Five, praticavam aquilo que alguns anos depois seria conhecido na
França sob o nome de cineclube.
Quatro deles dedicaram-se à carreira cinematográfica. Adhemar Gonzaga, talvez o
mais conhecido, em 1926 publicou a primeira revista brasileira dedicada ao cinema.
Em 1930, antes de fundar a Cinédia,– produtora ainda ativa nos dias de hoje –,
trabalha com Humberto Mauro na realização de Barro Humano.
Como críticos ou fazendo filmes, estes jovens foram os primeiros a criar um projeto de
cinema para o Brasil e dedicaram suas vidas a esse ideal. A motivação, certamente,
nasceu daquelas conversas nas proximidades do paredão. Nas pedras daquela
construção, que os protegiam das águas do mar, hoje desaparecidas, certamente
estavam incrustadas as origens “de uma verdadeira tomada de consciência
cinematográfica” (GOMES, 1980 p. 54) que o país passa a apresentar na década de 20
do século passado.
A efervescência cultural vivida por São Paulo no final dos anos 40 e início dos 50 era,
na verdade, resultado de um longo processo de modernização já perceptível na década
de 30. Uma arte de elite se consolida simultaneamente à formação de uma burguesia
industrial, oriunda, no caso de São Paulo, da imigração italiana e as oportunidades de
negócio que encontrou com o novo mercado interno criado pela riqueza cafeeira.
Nas metrópoles emergentes, as novas tecnologias impõem novos estilos de vida –
baseados na máquina e na eletricidade – e configura-se uma nova mentalidade. O
desenvolvimento tecnológico e as novas relações industriais que se esboçam alteram,
sobremaneira, a própria produção de bens simbólicos que aponta para um novo
fenômeno, a cultura de massa.
No Rio e em São Paulo o som dos motores automotivos – ônibus de dois andares,
carros de passeio e o táxi, que agora, graças à invenção do taxímetro cobra pela http://www.rehime.com.ar
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distância percorrida, não mais por hora – preenche o espaço sonoro do novo visual
arquitetônico: prédios são construídos e a propaganda, com seus painéis e muros,
anunciam em letras garrafais os novos bens de consumo. O lema “propaganda é a
alma do negócio” ganha vida.
E nas casas o som do rádio transforma-se em fenômeno social. Até o início da década
de 30, ele era transmitido de forma amadorística, feito à base da boa vontade de
pessoas que se associavam para montar uma emissora e, assim, difundir a cultura e
integrar o país. Com o Estado Novo a situação muda. Em 1932, através de decreto,
Getúlio Vargas autoriza a veiculação de propaganda para que as emissoras tivessem
bases mais sólidas.
O novo sistema industrial nascente, o cultural, desempenharia papel importante na
construção do mito de unidade nacional. Mito que será trabalhado intensamente pelo
aparelho de estado na Nova República e será intensificado durante o Estado Novo.
Mas se do ponto de vista econômico e da nascente indústria cultural temos
desdobramentos normais, do ponto de vista político a situação é outra. Com a
Revolução de 30 e a ascensão de Vargas ao poder, cria-se um estado forte que além de
interferir cada vez mais na economia, afasta a nascente burguesia industrial das
esferas do poder político.
As conseqüências deste distanciamento serão visíveis nos anos seguintes e se agravará
com o Estado Novo, que assume a liderança do processo produtivo. Mesmo
incapacitada de assumir seu papel político, a burguesia paulista mantém-se fiel aos
ideais de modernização que inclui, entre outras coisas, o acesso à educação e à
cultura.
Significativo, nesse sentido é o papel que terá a USP, criada por líderes paulistas para
capacitar a nova elite cultural, e em particular a Faculdade de Filosofia, na cultura
paulista. Entre os fundadores, a figura de Júlio de Mesquita Filho foi fundamental para
consolidar a teia de relações sociais que a Faculdade de Filosofia mantém com a
comunidade culta. Diretor-proprietário de O Estado de S Paulo, disponibilizou o espaço
de seu jornal aos professores, além de dar ampla cobertura aos eventos
extracurriculares da universidade.
Graças a este relacionamento é que se criam as condições para, em 1940, surgir o
cineclube. O principal responsável, e mentor do empreendimento, foi Paulo Emílio
Salles Gomes que, em 1935, depois de fugir da prisão devido à Intentona Comunista,
refugia-se na Europa. Lá, tem seu primeiro contato significativo com o cinema. E é nos
filmes que assiste e nas conversas que desenvolve com Plínio Sussekind Rocha, um dos
integrantes do Chaplin Club, que aprende a “ver filmes e de falar sobre cinema, de
forma empenhada, militante” (GOMES, apud ZUIN, 2001, p. 113).http://www.rehime.com.ar
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Com o início da guerra, em 1939, Paulo Emílio retorna ao Brasil e torna-se um dos
estudantes da Faculdade de Filosofia ligando-se a um grupo de jovens importantes no
cenário cultural paulista – Lourival Gomes Machado, Antônio Cândido, Décio de
Almeida Prado, Cícero Cristiano de Souza, entre outros. Em 1940, motivados pelo
entusiasmo de Paulo Emílio, esses moços iniciam as sessões de cinema na Faculdade
de Filosofia e criam o seu Clube de Cinema.
Mas, os filmes que assistem são os europeus. São Paulo produz um ou outro filme, mas
a cinematografia brasileira, neste período, é significativa.. É certo que ela se
concentrava no Rio de Janeiro nas mãos da Cinédia, de Adhemar Gonzaga, e de um ou
outro produtor. O que existia era, basicamente, a chanchada, que aos olhos dos
intelectuais paulistas, era execrável.
Em síntese, cinema brasileiro de arte não existe. O que se assiste nas sessões do Clube
de Cinema são os clássicos europeus e americanos… dos anos 20.  Filmes sobre os
quais “já havia todo um conjunto de interpretações e teorizações assentes” e, dessa
forma, a intelectualidade paulista retomava, segundo Galvão (1981, p. 29), “a reflexão
sobre o cinema no mesmo pé em que a haviam deixado os teóricos franceses nos
primeiros anos 30”.
A arte para se apresentar como tal deveria responder aos apelos de uma cultura
erudita, sofisticada, de elite, enfim. Como atribuir qualquer peso artístico àqueles
filmes mal feitos, réplicas dos filmes hollywoodianos, verdadeiros “abacaxis”, de baixa
qualidade e sem valor estético, como bem o define nosso dicionário.
Certamente, os intelectuais da época não considerariam esse tipo de obra como arte.
Mas, e os cineastas que às duras penas faziam cinema, como consideravam seu
trabalho?
Com esta dicotomia entre, de um lado os que pensam cinema e, do outro, os que
fazem cinema, inicia-se “um processo de apropriação das idéias cinematográficas por
um setor da elite intelectual da época” que marcaria por décadas a produção
cinematográfica brasileira: “pensar o cinema no Brasil significou pensar cinema
estrangeiro” (GALVÃO, 1981, p. 28).
De qualquer maneira, tanto a intervenção de Vinícius de Moraes no Rio, que
promoveu exibições cinematográficas no mesmo espírito cineclubista, quanto o
próprio Clube de Cinema de São Paulo, em sua curta existência, disseminaram uma
tese que “alguns anos depois tomaria corpo em São Paulo” e revelaria o caráter elitista
do fazer cinematográfico: “a condição fundamental para que possa existir um cinema
brasileiro é o desenvolvimento da cultura cinematográfica” (GALVÃO, 1981, p. 32
Grifos meus).http://www.rehime.com.ar
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Mais duradoura do que a experiência do Clube de Cinema foi a da revista Clima, criada
por inspiração de Alfredo Mesquita, do jornal O Estado de S. Paulo, e dirigida por
Lourival Gomes Machado tendo, em seu corpo de colaboradores o mesmo grupo
ligado ao cineclube.
Nesta revista, onde os vários campos das artes ganham espaço e relevância, começam
a se configurar as indagações do grupo no plano da história cultural (XAVIER, 1994),
que marcarão as bases ideológicas do processo de democratização cultural proposto
pela elite paulista. O rigor teórico e a seriedade intelectual levam o irreverente Oswald
de Andrade a apelidar seus integrantes de “chato boys”.
A revista é lançada em 1941. Em 1942 o cineclube, que começava a despertar a
atenção do público, é fechado. Seus integrantes tentam manter as sessões na
residência de um ou outro integrante, mas não por muito tempo.
Coincidentemente, a produção cinematográfica tem uma sensível redução no início da
década. Ela só vai se avolumar alguns anos depois já contando com a produção da
carioca Atlântida, que desbancará a Cinédia do topo da lista de maior produtora… de
chanchadas. Ou seja, para a elite intelectual paulista, mesmo com o Clube de Cinema
fechado e as discussões estagnadas, o cinema brasileiro continuava não existindo.
Terminada a guerra e findo o Estado Novo, o país entra num processo eufórico de
democratização e novos horizontes abrem-se em todas as áreas, da economia e
política às artes e cultura. Mas novos horizontes que deixam para trás o projeto
nacional desenvolvido desde os anos 30 com a ascensão de Getúlio ao poder. O novo
ordenamento mundial produzido pelo fim da guerra torna o país mais
interdependente do mercado internacional e exige uma nova postura da classe
dirigente e das elites culturais.
É nesse clima arejado que o antigo grupo do Clube de Cinema de São Paulo volta à
ativa em 1946. Em condições precárias, as projeções acontecem em diversos espaços:
primeiro no Consulado Americano, depois na Biblioteca Municipal e em outros
diferentes lugares. Mas, apesar da precariedade, um grande número de pessoas é
atraído às sessões e debates. O Estado de São Paulo continua colaborando e publica os
textos do debate público que ocorrem após os filmes.
Mesmo estando na Europa, a figura de Paulo Emílio Salles Gomes é fundamental para
a consolidação do Clube. Como seu sócio-correspondente participa do I Congresso
Internacional de Cineclubes, em 1947, filia-o à Federação Internacional dos Clubes de
Cinema e consegue uma coleção de filmes que dará origem à Filmoteca do Clube de
Cinema de São Paulo, futura Cinemateca Brasileira (GALVÃO, 1981, p. 34-5).
Evidentemente, os fundadores do Clube de Cinema não estavam distanciados das
outras esferas culturais e artísticas da vida em São Paulo e essa relação íntima não só http://www.rehime.com.ar
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facilitava a nova fase do Clube como garantiria seu desenvolvimento. Nesse sentido, as
relações do grupo com Francisco Matarazzo Sobrinho foram extremamente
importantes. Idealizador do MAM – Museu de Arte Moderna que naquele momento
era ainda um projeto, o magnata doa projetores ao Clube, consegue um novo espaço
de exibição e convida sua diretoria para participar do futuro departamento de cinema
do MAM (THOMPSON, 1964).
Nestas relações explícitas dos agentes culturais e da elite econômica, revela-se o novo
tipo de produção cultural. O mecenato deixa de ser um investimento em indivíduos,
como era até os anos 30, para ser um empreendimento institucional baseado na idéia
de arte e cultura como dispositivos formativos e educacionais. Disponibilizar a cultura,
assim, era propiciar, naquele momento, a reconstrução democrática do país.
E todos, agentes culturais, intelectuais, artistas e elite econômica, participam de todas
as atividades de forma entusiasmada. E as atividades do Clube de Cinema, também
tornada instituição, ganham amplitude quando ele passa, em 1949, a responder pelas
sessões cinematográficas do MAM e tem sua filmoteca incorporada à do Museu.
E a disseminação da tese exposta anos antes por Vinícius de Moraes sobre a
importância da cultura cinematográfica como condição para o desenvolvimento do
cinema brasileiro, até então inexistente, ganha corpo.
O Clube de Cinema realiza essa idéia ao promover a fundação de outros cineclubes
com o objetivo de se constituir um mercado de filmes de arte para facilitar o acesso às
cópias em cinematecas estrangeiras. O resultado é auspicioso. Em 1948 surgem vários
cineclubes: Rio de Janeiro, Santos, Porto Alegre, Fortaleza.
A partir da incorporação do Clube ao MAM o movimento se difunde e se consolida. Em
1950, São Paulo assiste ao primeiro Congresso de Clubes de Cinema, promovido pelo
Centro de Estudos Cinematográficos (CECSP). Dele participam alguns marilienses que,
dois anos depois, fundariam o Clube de Cinema de Marília que, apesar de todas as
dificuldades, desenvolve suas atividades de forma ininterrupta até hoje.
Todavia, sem desprezar o empenho de seus responsáveis em divulgar e colocar em
pauta as questões ligadas à arte cinematográfica, outros fatores importantes
contribuíram para o sucesso estrondoso do Clube de Cinema.
Desde a abertura do processo democrático iniciado em 1945, as elites culturais
desenvolveram uma série de atividades de valorização da arte e da cultura. Além disso,
a própria modernização dos meios de comunicação de massa ajudou a consolidar e a
expandir estes mesmos veículos.
A publicidade ganha novos contornos com a chegada ao país de novas agências
publicitárias, colaborando para a construção de um novo estilo de vida, divulgando os
novos bens de consumo produzidos pelo mercado interno. Praticidade e modernidade http://www.rehime.com.ar
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são os lemas que ajudam a construir o novo estilo brasileiro em contraposição ao
velho, agrário e atrasado.
O mercado editorial se amplia com a publicação de novas revistas e livros. As
emissoras de rádio aumentam em número, em variedade de atrações e ganham um
público fiel. O cinema torna-se um bem de consumo e, ao lado do futebol, “é a única
distração de massa” que leva muitas pessoas a comprar ingressos “sem sequer saber
qual a programação” (AUDRÁ JR., 1997, p. 90). O número de salas aumenta e os filmes
exibidos, em sua maioria são procedente dos Estados Unidos, país que nestes anos 40
solidifica seu domínio hollywoodiano.
No final destes anos 40 respirava-se cinema e existia uma enorme vontade de
produzir. O MASP – Museu de Arte de São Paulo, criado por Assis Chateaubriand e
Pietro Maria Bardi, em 1947, organiza um ano depois o Centro de Estudos
Cinematográficos. No mesmo ano, Chateaubriand, preparando-se para lançar a
primeira emissora de TV no país, é quem vai realizar a aventura. Produz um único
filme.
Se a vontade de fazer filmes se impõe num espaço distante da produção
cinematográfica, na qual, aparentemente, a evolução da linguagem artística não está
em pauta, o que pensar daquelas pessoas do Clube que institucionalizaram o cinema
“enquanto forma de arte respeitável” (GALVÃO, 1981, p. 38) e que, de uma forma ou
outra, respiravam cinema?
Lourival Gomes Machado e Benedito Duarte, integrantes do Clube, não fazem por
esperar. Registram a cores, a exposição retrospectiva da obra de Tarsila do Amaral no
MAM Infelizmente, o resultado desta primeira experiência jamais foi divulgado.
A vontade de filmar estava impregnada em muitos membros da elite paulista e montar
um grande centro produtor de cinema era a idéia que ganhava força. Curiosamente,
apesar de São Paulo não se destacar como um grande centro de produção, as
primeiras tentativas de encarar o cinema do ponto de vista industrial ocorreram na
capital paulista.
A primeira, em 1925, ano em que um fabricante de louças e apaixonado pelo cinema,
montou toda uma estrutura de estúdio cinematográfico para produzir um único filme.
Uma segunda investida paulista se deu nos fins da década de 1930/40 quando alguns
fazendeiros agitariam “o ambiente cinematográfico paulistano” fundando a Cia.
Cinematográfica Americana de Filmes que “construiu excelentes estúdios, comprou
máquinas, e levou anos a fazer seu primeiro e único filme” (VIANY, 1993, p. 85-6).
A Vera Cruz foi a terceira na cronologia histórica e a mais bem sucedida. Nascida de
um propósito sólido, produzir filmes de arte e desenvolver-se em ritmo industrial, os
fundadores da companhia tinham reunidas todas as condições necessárias para http://www.rehime.com.ar
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realizar o projeto. As condições subjetivas estavam dadas – a enorme vontade de se
produzir cinema como obra de arte. Os recursos artísticos seriam fornecidos pelo TBC
– Teatro Brasileiro de Comédia, do qual Franco Zampari, idealizador da Vera Cruz era
diretor-proprietário; os recursos financeiros sairiam de sua fortuna pessoal, além de
aportes de Francisco Matarazzo, um entusiasta da idéia e amigo pessoal de Zampari.
Tudo, assim, confluía para a mesma direção. Só faltava realizar o projeto. A burguesia
paulista estava a um passo de apropriar-se do fazer cinematográfico, sem a presença
de cineastas!
A discussão já estava bastante avançada quando o Centro de Estudos
Cinematográficos, do MASP, realiza, em 1949, o Seminário de Cinema, o “primeiro
curso regular de técnica e estética cinematográfica criado no Brasil”; Alberto
Cavalcanti é convidado para fazer uma série de conferências.
Cavalcanti, que estava fora do Brasil há 36 anos, chega em setembro e é convidado a
participar da companhia. Em novembro assume o cargo de produtor geral e se
responsabiliza em importar da Inglaterra a equipe de técnicos cinematográficos.
Desde o início a Vera Cruz construiu-se como companhia cinematográfica moderna,
capaz de produzir em série, sem sofrer solução de continuidade como normalmente
acontecia e, bàsicamente, produzir filmes com a mesma qualidade das películas
estrangeiras: “seria a Hollywood brasileira, conforme propalava a mídia da época”
(AUDRÁ JR., 1997, p. 17).
Os estúdios, a serem construídos, o seriam num terreno que pertencia a Ciccilo
Matarazzo uma granja de galinhas desativada. Os barracões existentes foram
adaptados e transformados em estúdios até que os definitivos fossem construídos.
Além da importação dos técnicos trazidos da Europa por Alberto Cavalcanti, seriam
também importados os melhores equipamentos disponíveis no mercado internacional.
Aliada à constituição de um star system semelhante aos padrões de Hollywood se
montaria toda uma estrutura de divulgação altamente eficiente: “Era uma verdadeira
redação de jornal, com datilógrafos, redatores, fotógrafos, arquivistas, tradutores,
tudo enfim. (…) Se a Vera Cruz não funcionou, não foi por falta de propaganda
(CAVALHEIRO LIMA, apud CATANI, 1990, p. 207).
Toda essa estrutura tinha um objetivo claro: produzir filmes em quantidade e
qualidade que imprimissem um diferencial mercadológico em relação aos filmes da
Atlântida, líder no mercado de filmes brasileiros daquela época. E, por mais paradoxal
que pareça, o pressuposto era, como já o vimos anteriormente, cinema brasileiro não
existia. Idéia, contudo, disseminada por vários segmentos sociais.
Assim, quando Caiçara, o primeiro filme produzido pela Vera Cruz, é lançado, o jornal
Folha da Manhã, em sua edição de 5 de novembro de 1950, estampava o título da http://www.rehime.com.ar
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manchete: “Nasce no Brasil a indústria cinematográfica”. E a matéria anunciava o
nascimento do cinema brasileiro:
Em  avant-première de gala e numa ante-estréia popular,
realizou-se sob uma atmosfera de expectativa justifica. O
comércio, a indústria e o povo tinham, durante estes últimos
oito meses, sua atenção voltada para a Companhia
Cinematográfica Vera Cruz, a primeira que se organiza no país
em moldes verdadeiramente industriais, assentada sobre bases
sólidas e preconizando as mais amplas perspectivas para a
cinematografia brasileira (LEITE, 2005, p. 79).
Estamos, portanto, partindo da estaca zero, já que a produção anterior não existe. O
que se desconhecia em relação à produção cinematográfica, considerada precária e
desorganizada, era que no interior do próprio processo produtivo daqueles filmes
populares, com orçamentos baixíssimos, era uma completa organização empresarial:
“tratava-se de orçamentos fechados. Cumpriam-se os prazos de produção, faziam-se
os filmes dentro das condições previstas” (GALVÃO, 1981, p. 42)
E a Vera Cruz, tinha esse espírito de organização empresarial?
O depoimento de Gini Brentani, a primeira pessoa a ser contratada pela Vera Cruz
como secretária e intérprete, nos dá uma resposta contundente. Em primeiro lugar, a
questão salarial. Apresentada a Franco Zampari por Adolfo Celi, que dirigiria o primeiro
filme da produtora, seu nome foi aprovado e ela foi contratada
ganhando um dinheiro absurdo: 3 mil cruzeiros por mês. Pra
que você tenha uma idéia do que isso representava, basta
contar que meu pai, que era o diretor-geral da Arno, e um dos
maiores acionistas da firma, tinha uma retirada mensal, fixada
por ele mesmo, de 5 mil cruzeiros – e nós levávamos uma boa
vida burguesa. Meu ordenado era um acinte. Aliás, todos os
outros também. Os primeiros técnicos estrangeiros que
chegaram aqui foram contratados por 4 mil cruzeiros. E
Cavalcanti ganhava oito. (BRENTANI apud GALVÃO, 1981, p.
110).
Nadava-se, portanto, em dinheiro2. E esta abundância é recorrente em vários dos
depoimentos colhidos por Maria Rita Galvão. Mas, além deste aspecto bastante
relevante numa empresa comercial, que deve adequar meios a fins para sustentar seu
2 Não deixa de ser curioso que uma das produções da Vera Cruz, Nadando em dinheiro, dirigida por
Abílio Pereira de Almeida e estrelada por Mazzaropi, conta exatamente a história de um motorista que
herda enorme fortuna e é obrigado a mudar de status. Sem saber como administrar tanta riqueza, ele se
perde “nadando em dinheiro”. Uma antevisão sobre os destinos da Vera Cruz?!http://www.rehime.com.ar
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próprio negócio, há outros aparentemente corriqueiros, mas bastante importantes.
Voltemos ao depoimento de Brentani:
Destes primeiros tempos, a impressão que eu guardo é a de
uma confusão generalizada. Todo mundo corria o tempo todo,
mas ninguém sabia direito o que fazer, era só agitação. E os
técnicos vinham chegando, era preciso arranjar alguma coisa
para que eles fizessem. O que fazer não faltava, só que não se
sabia por onde começar. […] Havia muito dinheiro, mas
nenhuma estrutura contábil; havia uma secretária poliglota,
mas nem um menino de recados pra fazer uma compra na
esquina. Nenhuma das coisas corriqueiras sem as quais não se
trabalha (1981, p. 111).
Para se fazer filme, precisa-se da película cinematográfica, sem a qual não há registro
possível. Isto parece óbvio. Todavia, ainda durante a produção de Caiçara, em 1950, os
negativos tinham que ser importados e necessitava-se de autorizações e uma série de
outras providências legais que acabaram atrasando a produção do filme.
Jacques Deheinzelin, contratado como iluminador, teve que substituir o diretor de
fotografia, Chick Fowle, e, por algum tempo, ficou responsável pelas filmagens que
ocorreriam em locações externas, em Ilha Bela. Na reunião com Franco Zampari para
organizar a produção, conta-nos Brentani, Deheinzelin, preocupado com a inexistência
de películas e falando um mal português advertiu o empresário:
“Precisamos inicialmente resolver a questão da película”; e o
Franco respondia: “Sim, sim”, e passava adiante; e o Jacques
insistia! “Sem filme não se faz filme”; e foi assim até que o
Franco deu o basta: “Chega desta conversa, por favor, não
vamos nos perder nos detalhes, cuidemos do essencial!”. E logo
em seguida começou a enumerar as necessidades essenciais,
tudo aquilo de que nós iríamos precisar naquela locação
selvagem em Ilha Bela – e a relação começou com o cálculo da
quantidade de mosquiteiros necessários par nos defender dos
pernilongos… (BRENTANI apud GALVÃO, 1981, p. 112).
De qualquer maneira, a Vera Cruz não conseguiu criar neste país a verdadeira
cinematografia, mito alimentado por muitos da elite daqueles anos, mas abriu a
possibilidade de se fazer e pensar o cinema nas condições que nos são dadas. Difíceis
até hoje, mas não impossíveis.
E, se todo este tema é possível, só o é porque existiu primeiro a insistência dos
cineclubistas, institucionalizados ou não, que ajudaram a pensar a realidade
cinematográfica brasileira. Em segundo lugar, a cada época histórica, os caminhos
traçados não fugiam das condições dadas. Nos anos 40, a partir da redemocratização http://www.rehime.com.ar
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do país, até 1964, quando novo golpe militar rouba a liberdade, a história caminhava
para a transformação da cultura num projeto democrático e, segundo a brilhante tese
de Maria Rita Galvão, uma cultura baseada em instituições que ajudaram a consolidar
seu caráter mercantil, mudando o próprio sentido da arte.
Hoje, num mundo digital, o cinema não tem mais a necessidade de se legitimar
enquanto arte. A discussão é outra. Aqui e ali reflorescem os cineclubes, mas ainda
desconhecemos qual será seu papel na formação cultural das novas gerações.
Há que se levar ainda em conta que a realidade cinematográfica atual é muito
diferente dos anos aqui tratados. O cinema convencional desapareceu enquanto
produção e enquanto exibição. Não se produz nem se assiste mais a filmes como
antigamente. As imagens em movimento se produzem e se veiculam em mídias
digitais. As próprias salas de exibição estão prestes a transformarem suas projeções
em projeções digitais e as condições de produção mudam a cada dia.
Só uma certeza permanece: as imagens em movimento ainda guardam seu encanto e
nos acalenta o espírito. Enquanto isso for mantido, pouco importa a forma de produzila ou assisti-la.
Referências bibliográficas
AUDRÁ JR., M. Cinematográfica Maristela: memórias de um produtor. São Paulo: Silver
Hawk, 1997.
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17, Novembro de 2001.
Referências audiovisuais
NADANDO em dinheiro. Direção: Abílio Pereira de Almeida. Intérprete: Mazzaropi,
entre outros. São Paulo: Cia. Cinematográfica Vera Cruz, 1952. Colorido, sonorizado,
película 35 mm.
A DAMA de Shangai. Direção: Orson Welles. Intérpretes: Orson Welles, Rita Hayworth
e outros. Los Angeles, CA. USA: Paramount Pictures, 1948. B&P, sonorizado, película 35
mm.

Cineclube e cinema no Brasil: traços de uma históriaCesar Augusto de Carvalho1Universidade Estadual de Londrina – UEL, PRc_carvalho@uol.com.brResumoO entrelaçamento cinema e modernidade se dá no Brasil mediada pela ação dos cineclubes. Divulgadores da idéia de uma qualidade estética na produção filmográfica, os cineclubes tiveram importante papel para o cinema nacional. Esse propósito cineclubista contaminou o imaginário da burguesia paulista, que realizou o projeto de uma produtora hollywoodiana, a Vera Cruz, que deixou um legado considerável para a história do cinema brasileiro, apesar dos seus poucos anos de existência.Palavras-chave: história do cinema, cultura cinematográfica; cineclube.A sessão inaugural do Clube de Cinema de Marília se deu em 12 de outubro de 1952. O filme exibido foi o hoje clássico, A Dama de Xangai, dirigido por Orson Welles e estrelado por uma Rita Hayword sedutora e atraente. No início daqueles anos 50, a efervescência cultural da capital paulista espraia-se pelo interior. E sob a liderança paulistana, o movimento cineclubista se consolida ao mesmo tempo em que surgem os museus e a arte se institucionaliza redefinindo os padrões estéticos.O Clube de Cinema de Marília é fruto desse momento. Momento em que a Cidade Menina, como era conhecida, vivia o apogeu da urbanização, processo típico do interior paulista. Suas características industriais delinearam-se já nos anos 30 quando, em substituição ao café, seus agricultores plantaram algodão criando as condições para o surgimento de duas fábricas de óleo. Nos anos seguintes o aumento das malhas ferroviárias e rodoviárias beneficiou a expansão industrial da cidade consolida-a como produtora de alimentos.O processo de modernização urbano e industrial trouxe, em seu bojo, a formação de uma classe de proprietários, uma burguesia local, cabocla, que, a exemplo dos burgueses paulistanos participavam, talvez de forma inconsciente, do mesmo processo de promoção e incentivo da cultura como parte integrante de um projeto liberal não                                                 1Professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UEL – Universidade Estadual de Londrina. Autor de Viagem ao mundo alternativo: a contracultura nos anos 80. SP: Edit. UNESP, 2008.http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC2claramente delineado. A alta cultura deveria ser democratizada e o cinema era, àquela altura, uma forma bastante plausível de aumentar o fluxo de bens simbólicos, antes restritos a uma camada ínfima da população brasileira, as elites ligadas aos grandes latifúndios.Neste contexto amplo e carregado de elementos simbólicos se insere a sessão inaugural do Clube de Cinema. Primeiro, o ato em si da inauguração que marca o movimento cineclubista em todo o país. Movimento este que tem como objetivo criar para o público um espaço cultural onde se pudesse assistir aos filmes, debatê-los e, assim, formar uma mentalidade cinematográfica que denotasse, nos gestos e hábitos de seus participantes, sua inserção na modernidade brasileira. Ao contrário das décadas anteriores, quando então o cinema era considerado uma arte menor, puro entretenimento do povo iletrado, a partir da década de 40 ele é alçado à categoria de arte. Arte promovida pelo desenvolvimento industrial e, ela mesma, uma arte industrial agora reconhecida. Cabe aos cineclubes e associações de cinéfilos a tarefa de legitimá-lo como arte e forma de conhecimento.Mas se o ato inaugural do Clube de Cinema de Marília insere-o num movimento mais amplo de democratização cultural, a escolha do filme de Welles confirma outros elementos presentes no cenário da cultura brasileira. Sem fugir à regra dos demais cineclubes, os cinéfilos marilienses escolhem para assistir e debater um filme que, além de estrangeiro é norte-americano. Neste momento, início dos anos 50, São Pauloapresenta um quadro de produção cinematográfica bastante ativa com várias produtoras atuando, dentre elas a Cia. Vera Cruz, propagada como a Hollywood brasileira.Uma década antes, no Rio, a Atlântida produzia aos borbotões as chanchadas. Os cineastas brasileiros enveredavam pelo caminho da aventura cinematográfica e, mal ou bem, colocavam seus filmes no circuito exibidor. Mas, o cinema brasileiro não é foco das discussões cineclubistas. Estes dão preferência aos filmes de arte, tecnicamente bem elaborados. Como se sabe, os filmes da Atlântida eram um sucesso de público, mas um fracasso de crítica e, portanto, escapavam ao universo da arte. Já a Vera Cruz, apesar de todo seu esforço midiático de se impor como uma produtora à altura de Hollywood, não conseguiu legitimidade como produtora de filmes artísticos. Em conseqüência, nos cineclubes, os escolhidos eram, necessariamente, os estrangeiros.Assim, a cultura que se delineia é uma cultura estilizada, sedutora e misteriosa. Cheia de códigos e segredos a exigir um repertório para ser conquistada, tal qual Elsa, a personagem interpretada por Rita Hayworth. E a sedução é tanta que no segundo encontro dos cinéfilos marilienses é escolhido um clássico, já àquela época, do cinema russo, O Encouraçado Potenkin (1925), de Sergei Eisenstein. E, cada vez mais http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC3motivados com a qualidade cinematográfica, as cópias em 16 mm são substituídas pelas cópias em 35 mm, uma bitola capaz de realçar ainda mais a qualidade técnica e, por conseqüência, a estética fílmica.Se o filme de Welles apresenta esta característica simbólica extrínseca, por assim dizer, decorrente do fato de ser um filme estrangeiro, encontram-se na sua narrativa dois outros elementos intrínsecos. São elas: a música de Ary Barroso, Na Baixa do Sapateiro, utilizada como trilha sonora fora do lugar, já que seus intérpretes são mexicanos e, portanto, nada tem a ver com o cenário onde se desenrola a ação, o México; e a história, contada pelo protagonista, dos tubarões que, ensandecidos pelo próprio sangue devoram uns aos outros.A primeira, além de marcar o modo típico dos norte-americanos lerem as culturas consideradas exóticas fora do contexto – e as sandices que ilustram esse fato são inúmeras -, ela nos apresenta uma pista. Pista esta que pode ajudar a compreender o modo de pensar brasileiro com sua imensa “vontade fela da puta de ser americano”, como o diz em outro contexto, Caetano Veloso. Vontade esta que permeará boa parte da produção cultural brasileira e, em especial, a própria Vera Cruz, a Hollywood brasileira.Welles certamente conheceu a música de Ary Barroso quando aqui esteve, nos idos de 40, na campanha da política da boa vizinhança patrocinada pelo governo americano. A missão do diretor era filmar um documentário sobre o Brasil, mas o projeto foi abandonado. Se a presença de Welles foi ocasional, qualquer outro diretor poderia ter vindo, a política de aproximação norte-americana não. E suas marcas incrustaram-se em nossa cultura e ajudaram, ainda que antropofagicamente, a definir nosso brazilian way of life.O segundo elemento intrínseco à narrativa fílmica é a história dos tubarões. Utilizada como metáfora para caracterizar o comportamento autofágico de seus personagens, ela serve também para metaforizar a situação brasileira da época. A própria cidade de Marília, à sua maneira cabocla, vê nascer um novo tipo de proprietário, o industrial, que a população apelida de tubarão, referindo-se ao jeito inescrupuloso de aumentar lucros para satisfazer sua ganância.A projeção do filme em 1952 é um evento deste período histórico da sociedade brasileira, em especial a paulista, que vê surgir os novos ricos, empresários industriais, e suas fábricas fumegantes.Mas a modernidade não se constrói só com fábricas, ela precisa de um estilo de vida condizente e legítimo; a cultura, em seu significado civilizador e formador de mentalidades pode, e deve cumprir este papel.http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC4O cinema será um dispositivo importante neste processo. Depois de legitimado como arte, os cineclubes se encarregam de propagar a importância da cultura cinematográfica e, num certo sentido, dirigirem as discussões sobre o cinema como arte e suas diferenças com o cinema comercial, produto de massa considerado não artístico.Indissociavelmente ligado à figura do cineclube o cinema brasileiro deve boa parte de sua existência às pessoas que, movidas pela paixão, trabalharam em prol de uma cultura cinematográfica. No caso brasileiro, o exemplo mais evidente é o papel que os integrantes do primeiro cineclube, o Paredão, teve na formação de um projeto para o cinema brasileiro. Eram cinco jovens, entre os 18 e 20 anos, no final da década de 1910, que saíam do cinema e iam para as encostas de um paredão conversarem a respeito do filme assistido. Autointitulados Big Five, praticavam aquilo que alguns anos depois seria conhecido na França sob o nome de cineclube.  Quatro deles dedicaram-se à carreira cinematográfica. Adhemar Gonzaga, talvez o mais conhecido, em 1926 publicou a primeira revista brasileira dedicada ao cinema. Em 1930, antes de fundar a Cinédia,– produtora ainda ativa nos dias de hoje –, trabalha com Humberto Mauro na realização de Barro Humano.Como críticos ou fazendo filmes, estes jovens foram os primeiros a criar um projeto de cinema para o Brasil e dedicaram suas vidas a esse ideal. A motivação, certamente, nasceu daquelas conversas nas proximidades do paredão. Nas pedras daquela construção, que os protegiam das águas do mar, hoje desaparecidas, certamente estavam incrustadas as origens “de uma verdadeira tomada de consciência cinematográfica” (GOMES, 1980 p. 54) que o país passa a apresentar na década de 20 do século passado.A efervescência cultural vivida por São Paulo no final dos anos 40 e início dos 50 era, na verdade, resultado de um longo processo de modernização já perceptível na década de 30. Uma arte de elite se consolida simultaneamente à formação de uma burguesia industrial, oriunda, no caso de São Paulo, da imigração italiana e as oportunidades de negócio que encontrou com o novo mercado interno criado pela riqueza cafeeira.Nas metrópoles emergentes, as novas tecnologias impõem novos estilos de vida –baseados na máquina e na eletricidade – e configura-se uma nova mentalidade. O desenvolvimento tecnológico e as novas relações industriais que se esboçam alteram, sobremaneira, a própria produção de bens simbólicos que aponta para um novo fenômeno, a cultura de massa.No Rio e em São Paulo o som dos motores automotivos – ônibus de dois andares, carros de passeio e o táxi, que agora, graças à invenção do taxímetro cobra pela http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC5distância percorrida, não mais por hora – preenche o espaço sonoro do novo visual arquitetônico: prédios são construídos e a propaganda, com seus painéis e muros, anunciam em letras garrafais os novos bens de consumo. O lema “propaganda é a alma do negócio” ganha vida. E nas casas o som do rádio transforma-se em fenômeno social. Até o início da década de 30, ele era transmitido de forma amadorística, feito à base da boa vontade de pessoas que se associavam para montar uma emissora e, assim, difundir a cultura e integrar o país. Com o Estado Novo a situação muda. Em 1932, através de decreto, Getúlio Vargas autoriza a veiculação de propaganda para que as emissoras tivessem bases mais sólidas.O novo sistema industrial nascente, o cultural, desempenharia papel importante na construção do mito de unidade nacional. Mito que será trabalhado intensamente pelo aparelho de estado na Nova República e será intensificado durante o Estado Novo.Mas se do ponto de vista econômico e da nascente indústria cultural temos desdobramentos normais, do ponto de vista político a situação é outra. Com a Revolução de 30 e a ascensão de Vargas ao poder, cria-se um estado forte que além de interferir cada vez mais na economia, afasta a nascente burguesia industrial das esferas do poder político.As conseqüências deste distanciamento serão visíveis nos anos seguintes e se agravará com o Estado Novo, que assume a liderança do processo produtivo. Mesmo incapacitada de assumir seu papel político, a burguesia paulista mantém-se fiel aos ideais de modernização que inclui, entre outras coisas, o acesso à educação e à cultura.Significativo, nesse sentido é o papel que terá a USP, criada por líderes paulistas para capacitar a nova elite cultural, e em particular a Faculdade de Filosofia, na cultura paulista. Entre os fundadores, a figura de Júlio de Mesquita Filho foi fundamental para consolidar a teia de relações sociais que a Faculdade de Filosofia mantém com a comunidade culta. Diretor-proprietário de O Estado de S Paulo, disponibilizou o espaço de seu jornal aos professores, além de dar ampla cobertura aos eventos extracurriculares da universidade.Graças a este relacionamento é que se criam as condições para, em 1940, surgir o cineclube. O principal responsável, e mentor do empreendimento, foi Paulo Emílio Salles Gomes que, em 1935, depois de fugir da prisão devido à Intentona Comunista, refugia-se na Europa. Lá, tem seu primeiro contato significativo com o cinema. E é nos filmes que assiste e nas conversas que desenvolve com Plínio Sussekind Rocha, um dos integrantes do Chaplin Club, que aprende a “ver filmes e de falar sobre cinema, de forma empenhada, militante” (GOMES, apud ZUIN, 2001, p. 113).http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC6Com o início da guerra, em 1939, Paulo Emílio retorna ao Brasil e torna-se um dos estudantes da Faculdade de Filosofia ligando-se a um grupo de jovens importantes no cenário cultural paulista – Lourival Gomes Machado, Antônio Cândido, Décio de Almeida Prado, Cícero Cristiano de Souza, entre outros. Em 1940, motivados pelo entusiasmo de Paulo Emílio, esses moços iniciam as sessões de cinema na Faculdade de Filosofia e criam o seu Clube de Cinema.Mas, os filmes que assistem são os europeus. São Paulo produz um ou outro filme, mas a cinematografia brasileira, neste período, é significativa.. É certo que ela se concentrava no Rio de Janeiro nas mãos da Cinédia, de Adhemar Gonzaga, e de um ou outro produtor. O que existia era, basicamente, a chanchada, que aos olhos dos intelectuais paulistas, era execrável.Em síntese, cinema brasileiro de arte não existe. O que se assiste nas sessões do Clube de Cinema são os clássicos europeus e americanos… dos anos 20.  Filmes sobre os quais “já havia todo um conjunto de interpretações e teorizações assentes” e, dessa forma, a intelectualidade paulista retomava, segundo Galvão (1981, p. 29), “a reflexão sobre o cinema no mesmo pé em que a haviam deixado os teóricos franceses nos primeiros anos 30”.A arte para se apresentar como tal deveria responder aos apelos de uma cultura erudita, sofisticada, de elite, enfim. Como atribuir qualquer peso artístico àqueles filmes mal feitos, réplicas dos filmes hollywoodianos, verdadeiros “abacaxis”, de baixa qualidade e sem valor estético, como bem o define nosso dicionário.Certamente, os intelectuais da época não considerariam esse tipo de obra como arte. Mas, e os cineastas que às duras penas faziam cinema, como consideravam seu trabalho? Com esta dicotomia entre, de um lado os que pensam cinema e, do outro, os que fazem cinema, inicia-se “um processo de apropriação das idéias cinematográficas por um setor da elite intelectual da época” que marcaria por décadas a produção cinematográfica brasileira: “pensar o cinema no Brasil significou pensar cinema estrangeiro” (GALVÃO, 1981, p. 28).De qualquer maneira, tanto a intervenção de Vinícius de Moraes no Rio, que promoveu exibições cinematográficas no mesmo espírito cineclubista, quanto o próprio Clube de Cinema de São Paulo, em sua curta existência, disseminaram uma tese que “alguns anos depois tomaria corpo em São Paulo” e revelaria o caráter elitista do fazer cinematográfico: “a condição fundamental para que possa existir um cinema brasileiro é o desenvolvimento da cultura cinematográfica” (GALVÃO, 1981, p. 32 Grifos meus).http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC7Mais duradoura do que a experiência do Clube de Cinema foi a da revista Clima, criada por inspiração de Alfredo Mesquita, do jornal O Estado de S. Paulo, e dirigida por Lourival Gomes Machado tendo, em seu corpo de colaboradores o mesmo grupo ligado ao cineclube.Nesta revista, onde os vários campos das artes ganham espaço e relevância, começam a se configurar as indagações do grupo no plano da história cultural (XAVIER, 1994), que marcarão as bases ideológicas do processo de democratização cultural proposto pela elite paulista. O rigor teórico e a seriedade intelectual levam o irreverente Oswald de Andrade a apelidar seus integrantes de “chato boys”.A revista é lançada em 1941. Em 1942 o cineclube, que começava a despertar a atenção do público, é fechado. Seus integrantes tentam manter as sessões na residência de um ou outro integrante, mas não por muito tempo.Coincidentemente, a produção cinematográfica tem uma sensível redução no início da década. Ela só vai se avolumar alguns anos depois já contando com a produção da carioca Atlântida, que desbancará a Cinédia do topo da lista de maior produtora… de chanchadas. Ou seja, para a elite intelectual paulista, mesmo com o Clube de Cinema fechado e as discussões estagnadas, o cinema brasileiro continuava não existindo.Terminada a guerra e findo o Estado Novo, o país entra num processo eufórico de democratização e novos horizontes abrem-se em todas as áreas, da economia e política às artes e cultura. Mas novos horizontes que deixam para trás o projeto nacional desenvolvido desde os anos 30 com a ascensão de Getúlio ao poder. O novo ordenamento mundial produzido pelo fim da guerra torna o país mais interdependente do mercado internacional e exige uma nova postura da classe dirigente e das elites culturais. É nesse clima arejado que o antigo grupo do Clube de Cinema de São Paulo volta à ativa em 1946. Em condições precárias, as projeções acontecem em diversos espaços: primeiro no Consulado Americano, depois na Biblioteca Municipal e em outros diferentes lugares. Mas, apesar da precariedade, um grande número de pessoas é atraído às sessões e debates. O Estado de São Paulo continua colaborando e publica os textos do debate público que ocorrem após os filmes.Mesmo estando na Europa, a figura de Paulo Emílio Salles Gomes é fundamental para a consolidação do Clube. Como seu sócio-correspondente participa do I Congresso Internacional de Cineclubes, em 1947, filia-o à Federação Internacional dos Clubes de Cinema e consegue uma coleção de filmes que dará origem à Filmoteca do Clube de Cinema de São Paulo, futura Cinemateca Brasileira (GALVÃO, 1981, p. 34-5).Evidentemente, os fundadores do Clube de Cinema não estavam distanciados das outras esferas culturais e artísticas da vida em São Paulo e essa relação íntima não só http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC8facilitava a nova fase do Clube como garantiria seu desenvolvimento. Nesse sentido, as relações do grupo com Francisco Matarazzo Sobrinho foram extremamente importantes. Idealizador do MAM – Museu de Arte Moderna que naquele momento era ainda um projeto, o magnata doa projetores ao Clube, consegue um novo espaço de exibição e convida sua diretoria para participar do futuro departamento de cinema do MAM (THOMPSON, 1964).Nestas relações explícitas dos agentes culturais e da elite econômica, revela-se o novo tipo de produção cultural. O mecenato deixa de ser um investimento em indivíduos,como era até os anos 30, para ser um empreendimento institucional baseado na idéia de arte e cultura como dispositivos formativos e educacionais. Disponibilizar a cultura, assim, era propiciar, naquele momento, a reconstrução democrática do país. E todos, agentes culturais, intelectuais, artistas e elite econômica, participam de todas as atividades de forma entusiasmada. E as atividades do Clube de Cinema, também tornada instituição, ganham amplitude quando ele passa, em 1949, a responder pelas sessões cinematográficas do MAM e tem sua filmoteca incorporada à do Museu.E a disseminação da tese exposta anos antes por Vinícius de Moraes sobre a importância da cultura cinematográfica como condição para o desenvolvimento do cinema brasileiro, até então inexistente, ganha corpo. O Clube de Cinema realiza essa idéia ao promover a fundação de outros cineclubes com o objetivo de se constituir um mercado de filmes de arte para facilitar o acesso às cópias em cinematecas estrangeiras. O resultado é auspicioso. Em 1948 surgem vários cineclubes: Rio de Janeiro, Santos, Porto Alegre, Fortaleza.A partir da incorporação do Clube ao MAM o movimento se difunde e se consolida. Em 1950, São Paulo assiste ao primeiro Congresso de Clubes de Cinema, promovido pelo Centro de Estudos Cinematográficos (CECSP). Dele participam alguns marilienses que, dois anos depois, fundariam o Clube de Cinema de Marília que, apesar de todas as dificuldades, desenvolve suas atividades de forma ininterrupta até hoje.Todavia, sem desprezar o empenho de seus responsáveis em divulgar e colocar em pauta as questões ligadas à arte cinematográfica, outros fatores importantes contribuíram para o sucesso estrondoso do Clube de Cinema. Desde a abertura do processo democrático iniciado em 1945, as elites culturais desenvolveram uma série de atividades de valorização da arte e da cultura. Além disso, a própria modernização dos meios de comunicação de massa ajudou a consolidar e a expandir estes mesmos veículos.A publicidade ganha novos contornos com a chegada ao país de novas agências publicitárias, colaborando para a construção de um novo estilo de vida, divulgando os novos bens de consumo produzidos pelo mercado interno. Praticidade e modernidade http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC9são os lemas que ajudam a construir o novo estilo brasileiro em contraposição ao velho, agrário e atrasado.O mercado editorial se amplia com a publicação de novas revistas e livros. As emissoras de rádio aumentam em número, em variedade de atrações e ganham um público fiel. O cinema torna-se um bem de consumo e, ao lado do futebol, “é a única distração de massa” que leva muitas pessoas a comprar ingressos “sem sequer saber qual a programação” (AUDRÁ JR., 1997, p. 90). O número de salas aumenta e os filmes exibidos, em sua maioria são procedente dos Estados Unidos, país que nestes anos 40 solidifica seu domínio hollywoodiano.No final destes anos 40 respirava-se cinema e existia uma enorme vontade de produzir. O MASP – Museu de Arte de São Paulo, criado por Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi, em 1947, organiza um ano depois o Centro de Estudos Cinematográficos. No mesmo ano, Chateaubriand, preparando-se para lançar a primeira emissora de TV no país, é quem vai realizar a aventura. Produz um único filme.Se a vontade de fazer filmes se impõe num espaço distante da produção cinematográfica, na qual, aparentemente, a evolução da linguagem artística não está em pauta, o que pensar daquelas pessoas do Clube que institucionalizaram o cinema “enquanto forma de arte respeitável” (GALVÃO, 1981, p. 38) e que, de uma forma ou outra, respiravam cinema?Lourival Gomes Machado e Benedito Duarte, integrantes do Clube, não fazem por esperar. Registram a cores, a exposição retrospectiva da obra de Tarsila do Amaral no MAM Infelizmente, o resultado desta primeira experiência jamais foi divulgado.A vontade de filmar estava impregnada em muitos membros da elite paulista e montar um grande centro produtor de cinema era a idéia que ganhava força. Curiosamente, apesar de São Paulo não se destacar como um grande centro de produção, as primeiras tentativas de encarar o cinema do ponto de vista industrial ocorreram na capital paulista. A primeira, em 1925, ano em que um fabricante de louças e apaixonado pelo cinema, montou toda uma estrutura de estúdio cinematográfico para produzir um único filme. Uma segunda investida paulista se deu nos fins da década de 1930/40 quando alguns fazendeiros agitariam “o ambiente cinematográfico paulistano” fundando a Cia. Cinematográfica Americana de Filmes que “construiu excelentes estúdios, comprou máquinas, e levou anos a fazer seu primeiro e único filme” (VIANY, 1993, p. 85-6).A Vera Cruz foi a terceira na cronologia histórica e a mais bem sucedida. Nascida de um propósito sólido, produzir filmes de arte e desenvolver-se em ritmo industrial, os fundadores da companhia tinham reunidas todas as condições necessárias para http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC10realizar o projeto. As condições subjetivas estavam dadas – a enorme vontade de se produzir cinema como obra de arte. Os recursos artísticos seriam fornecidos pelo TBC – Teatro Brasileiro de Comédia, do qual Franco Zampari, idealizador da Vera Cruz era diretor-proprietário; os recursos financeiros sairiam de sua fortuna pessoal, além de aportes de Francisco Matarazzo, um entusiasta da idéia e amigo pessoal de Zampari.Tudo, assim, confluía para a mesma direção. Só faltava realizar o projeto. A burguesia paulista estava a um passo de apropriar-se do fazer cinematográfico, sem a presença de cineastas!A discussão já estava bastante avançada quando o Centro de Estudos Cinematográficos, do MASP, realiza, em 1949, o Seminário de Cinema, o “primeiro curso regular de técnica e estética cinematográfica criado no Brasil”; Alberto Cavalcanti é convidado para fazer uma série de conferências.Cavalcanti, que estava fora do Brasil há 36 anos, chega em setembro e é convidado a participar da companhia. Em novembro assume o cargo de produtor geral e se responsabiliza em importar da Inglaterra a equipe de técnicos cinematográficos.Desde o início a Vera Cruz construiu-se como companhia cinematográfica moderna, capaz de produzir em série, sem sofrer solução de continuidade como normalmente acontecia e, bàsicamente, produzir filmes com a mesma qualidade das películas estrangeiras: “seria a Hollywood brasileira, conforme propalava a mídia da época” (AUDRÁ JR., 1997, p. 17).Os estúdios, a serem construídos, o seriam num terreno que pertencia a Ciccilo Matarazzo uma granja de galinhas desativada. Os barracões existentes foram adaptados e transformados em estúdios até que os definitivos fossem construídos.Além da importação dos técnicos trazidos da Europa por Alberto Cavalcanti, seriam também importados os melhores equipamentos disponíveis no mercado internacional. Aliada à constituição de um star system semelhante aos padrões de Hollywood se montaria toda uma estrutura de divulgação altamente eficiente: “Era uma verdadeira redação de jornal, com datilógrafos, redatores, fotógrafos, arquivistas, tradutores, tudo enfim. (…) Se a Vera Cruz não funcionou, não foi por falta de propaganda (CAVALHEIRO LIMA, apud CATANI, 1990, p. 207).Toda essa estrutura tinha um objetivo claro: produzir filmes em quantidade e qualidade que imprimissem um diferencial mercadológico em relação aos filmes da Atlântida, líder no mercado de filmes brasileiros daquela época. E, por mais paradoxal que pareça, o pressuposto era, como já o vimos anteriormente, cinema brasileiro não existia. Idéia, contudo, disseminada por vários segmentos sociais.Assim, quando Caiçara, o primeiro filme produzido pela Vera Cruz, é lançado, o jornal Folha da Manhã, em sua edição de 5 de novembro de 1950, estampava o título da http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC11manchete: “Nasce no Brasil a indústria cinematográfica”. E a matéria anunciava o nascimento do cinema brasileiro:Em  avant-première de gala e numa ante-estréia popular, realizou-se sob uma atmosfera de expectativa justifica. O comércio, a indústria e o povo tinham, durante estes últimos oito meses, sua atenção voltada para a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, a primeira que se organiza no país em moldes verdadeiramente industriais, assentada sobre bases sólidas e preconizando as mais amplas perspectivas para a cinematografia brasileira (LEITE, 2005, p. 79).Estamos, portanto, partindo da estaca zero, já que a produção anterior não existe. O que se desconhecia em relação à produção cinematográfica, considerada precária e desorganizada, era que no interior do próprio processo produtivo daqueles filmes populares, com orçamentos baixíssimos, era uma completa organização empresarial: “tratava-se de orçamentos fechados. Cumpriam-se os prazos de produção, faziam-se os filmes dentro das condições previstas” (GALVÃO, 1981, p. 42)E a Vera Cruz, tinha esse espírito de organização empresarial?O depoimento de Gini Brentani, a primeira pessoa a ser contratada pela Vera Cruz como secretária e intérprete, nos dá uma resposta contundente. Em primeiro lugar, a questão salarial. Apresentada a Franco Zampari por Adolfo Celi, que dirigiria o primeiro filme da produtora, seu nome foi aprovado e ela foi contratadaganhando um dinheiro absurdo: 3 mil cruzeiros por mês. Praque você tenha uma idéia do que isso representava, basta contar que meu pai, que era o diretor-geral da Arno, e um dos maiores acionistas da firma, tinha uma retirada mensal, fixada por ele mesmo, de 5 mil cruzeiros – e nós levávamos uma boa vida burguesa. Meu ordenado era um acinte. Aliás, todos os outros também. Os primeiros técnicos estrangeiros que chegaram aqui foram contratados por 4 mil cruzeiros. E Cavalcanti ganhava oito. (BRENTANI apud GALVÃO, 1981, p. 110).Nadava-se, portanto, em dinheiro2. E esta abundância é recorrente em vários dos depoimentos colhidos por Maria Rita Galvão. Mas, além deste aspecto bastante relevante numa empresa comercial, que deve adequar meios a fins para sustentar seu                                                 2 Não deixa de ser curioso que uma das produções da Vera Cruz, Nadando em dinheiro, dirigida por Abílio Pereira de Almeida e estrelada por Mazzaropi, conta exatamente a história de um motorista que herda enorme fortuna e é obrigado a mudar de status. Sem saber como administrar tanta riqueza, ele se perde “nadando em dinheiro”. Uma antevisão sobre os destinos da Vera Cruz?!http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC12próprio negócio, há outros aparentemente corriqueiros, mas bastante importantes. Voltemos ao depoimento de Brentani:Destes primeiros tempos, a impressão que eu guardo é a de uma confusão generalizada. Todo mundo corria o tempo todo, mas ninguém sabia direito o que fazer, era só agitação. E os técnicos vinham chegando, era preciso arranjar alguma coisa para que eles fizessem. O que fazer não faltava, só que não se sabia por onde começar. […] Havia muito dinheiro, mas nenhuma estrutura contábil; havia uma secretária poliglota, mas nem um menino de recados pra fazer uma compra na esquina. Nenhuma das coisas corriqueiras sem as quais não se trabalha (1981, p. 111).Para se fazer filme, precisa-se da película cinematográfica, sem a qual não há registro possível. Isto parece óbvio. Todavia, ainda durante a produção de Caiçara, em 1950, os negativos tinham que ser importados e necessitava-se de autorizações e uma série de outras providências legais que acabaram atrasando a produção do filme. Jacques Deheinzelin, contratado como iluminador, teve que substituir o diretor de fotografia, Chick Fowle, e, por algum tempo, ficou responsável pelas filmagens que ocorreriam em locações externas, em Ilha Bela. Na reunião com Franco Zampari para organizar a produção, conta-nos Brentani, Deheinzelin, preocupado com a inexistência de películas e falando um mal português advertiu o empresário:“Precisamos inicialmente resolver a questão da película”; e o Franco respondia: “Sim, sim”, e passava adiante; e o Jacques insistia! “Sem filme não se faz filme”; e foi assim até que o Franco deu o basta: “Chega desta conversa, por favor, não vamos nos perder nos detalhes, cuidemos do essencial!”. E logo em seguida começou a enumerar as necessidades essenciais, tudo aquilo de que nós iríamos precisar naquela locação selvagem em Ilha Bela – e a relação começou com o cálculo da quantidade de mosquiteiros necessários par nos defender dos pernilongos… (BRENTANI apud GALVÃO, 1981, p. 112).De qualquer maneira, a Vera Cruz não conseguiu criar neste país a verdadeira cinematografia, mito alimentado por muitos da elite daqueles anos, mas abriu a possibilidade de se fazer e pensar o cinema nas condições que nos são dadas. Difíceis até hoje, mas não impossíveis.E, se todo este tema é possível, só o é porque existiu primeiro a insistência dos cineclubistas, institucionalizados ou não, que ajudaram a pensar a realidade cinematográfica brasileira. Em segundo lugar, a cada época histórica, os caminhos traçados não fugiam das condições dadas. Nos anos 40, a partir da redemocratização http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC13do país, até 1964, quando novo golpe militar rouba a liberdade, a história caminhava para a transformação da cultura num projeto democrático e, segundo a brilhante tese de Maria Rita Galvão, uma cultura baseada em instituições que ajudaram a consolidar seu caráter mercantil, mudando o próprio sentido da arte. Hoje, num mundo digital, o cinema não tem mais a necessidade de se legitimar enquanto arte. A discussão é outra. Aqui e ali reflorescem os cineclubes, mas ainda desconhecemos qual será seu papel na formação cultural das novas gerações. Há que se levar ainda em conta que a realidade cinematográfica atual é muito diferente dos anos aqui tratados. O cinema convencional desapareceu enquanto produção e enquanto exibição. Não se produz nem se assiste mais a filmes como antigamente. As imagens em movimento se produzem e se veiculam em mídias digitais. As próprias salas de exibição estão prestes a transformarem suas projeções em projeções digitais e as condições de produção mudam a cada dia.Só uma certeza permanece: as imagens em movimento ainda guardam seu encanto e nos acalenta o espírito. Enquanto isso for mantido, pouco importa a forma de produzila ou assisti-la. Referências bibliográficasAUDRÁ JR., M. Cinematográfica Maristela: memórias de um produtor. São Paulo: Silver Hawk, 1997.CALIL, C. A. & MACHADO, M.T. (orgs.). Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense/EMBRAFILME, 1986.CATANI, A.M.. “A aventura industrial e o cinema paulista (1930-1955). In: RAMOS, F. (org.). História do cinema brasileiro. 2ª. Ed. São Paulo: Art Editora, 1990.GALVÃO, M.R.  Burguesia e cinema: o Caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.GOMES, P.E.S. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.MATTOS, D.J.L.  O espetáculo da cultura paulista: teatro e televisão em São Paulo (décadas de 1940 e 1950). São Paulo: Códex, 2002.THOMPSON, C. Cinemateca Brasileira e seus problemas: informações e documentação. São Paulo: Fundação Cinemateca Brasileira, 1964.http://www.rehime.com.arX Congreso de ALAIC14VIANY, A. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1993.XAVIER, I. “Paulo Emilio e o estudo do Cinema”. Estudos Avançados. São Paulo: USP,  V. 8, nº. 22, Dezembro, 1994. ZUIN, J.C.S. “Empenho político e cultural em Paulo Emílio Salles Gomes: 1935-1945”. Revista de Sociologia e Política. São Paulo: Fundação Escola de Sociologia e Política, nº. 17, Novembro de 2001. Referências audiovisuaisNADANDO em dinheiro. Direção: Abílio Pereira de Almeida. Intérprete: Mazzaropi, entre outros. São Paulo: Cia. Cinematográfica Vera Cruz, 1952. Colorido, sonorizado, película 35 mm. A DAMA de Shangai. Direção: Orson Welles. Intérpretes: Orson Welles, Rita Hayworth e outros. Los Angeles, CA. USA: Paramount Pictures, 1948. B&P, sonorizado, película 35 mm.